m a l a m i k i g i :



domingo, janeiro 12, 2003

. na pia uma barata comia algum resto de comida.
e de verdade: foi um momento bonito.
como se a comida tivesse sido posta justo para ela. uma porção inteira de um resto de algum doce que nós comemos depois do jantar.
uma barata comendo despreocupada sem pressa sem parecer um bandido como as outras baratas. nada nada parecia incomodá-la, e ela se alimentava como um gato naturalmente elegante , de olhinhos fechados, suas patinhas se movendo com a delicadeza de uma lady. penso agora até ter vislumbado o ritmo gracioso de suas lambidas gentis.
era de noite e no silêncio que as pessoas faziam enquanto dormiam aquilo parecia mais solene e a humildade de aparecer sem a pretensão de assustar aqueles que não eram da sua espécie, junto com o doce descompromisso a que se outorgava, tornavam aquela barata tão escura e cascuda quanto as outras em um bicho diferente e especial. em um ser dotado de uma quase voz e de uma quase alma. e me entreguei assim ao exercício passageiro de ter aquela barata como meu pequeno bichinho ..
como se a barata fosse meu pequeno animalzinho tão comportado comendo displicentemente sua própria comida .tão diferente da histeria e paranóia das baratas mais ordinárias, aquelas que acabam realmente nos assustando e que acabam se tornando impertinentes. aquela teria o nome de Lis, se um dia se pudesse nomear as baratas. um nome tão frágil que antes de ser se desfaz.

e então tão docemente displicente e enternecido como a um bicho querido se deixa em sua privacidade de bicho, apaguei a luz da cozinha e a deixei comendo até que se fartasse e fosse embora com seus passinhos sutis e se recolhesse com um suspiro e um pequeno sorriso em sua cama de barata em sua casa de barata com a sua família de baratas que não lhe davam atenção. mas isso já nem lhe importava mais.





mas deus. dói não ser clarice lispector.








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